quinta-feira, 19 de julho de 2018

Cruel Soberano

Olá de novo, pessoas! Depois de um tempo ausente, saudações do Louco!

Nem consigo lembrar como foi que isso começou; indo pro serviço, acho, e eu tava lendo algo sobre reis, um dos livros que eu sempre leio no ônibus. Indo pro treinamento da escola? Provavelmente.

E como sempre acontece, quando você se questiona, surgiu a sementinha desta idéia. Num mundo destes com reinos, magia e sistemas de governo que não funcionam, eis que o Reino de Valência funciona tão bem quanto possível. Prosperidade merecida, terras férteis... as coisas vão bem.

Só que, com tudo indo tão bem, ainda há um grupo de nobres e diplomatas que contrata um casal de mercenários, uma maga e um guerreiro, pra assassinar aquele que é chamado de 'O Mais Cruel Soberano', o rei de Valência.

Eis uma história bem curta (não tô acostumado a conseguir isso), e com um final em aberto. Como 'você' responderia à última pergunta? E, que final daria à história, se fosse sua pra terminar?

Boa leitura! ^_^



Capítulo I – Nota Desafinada

_ Matar o rei???!!!
Estavam andando sozinhos pela estrada que deveria levar ao Solar Real, e a primeira reação de Clóvis foi algo que previsível. Mesmo assim, Angélica preferiria que ele fosse mais discreto.
_ Mais baixo, Clóvis – ela murmurou, aborrecida – Vai ser mais difícil de fazer, sabe, se chamarmos atenção antes da hora.
_ Ma-ma-ma-ma-mas espera aí, como assim? – ele tornou a perguntar, ainda agitado – Tipo, o rei ‘daqui’, Rei Edo...? Aquele que dizem...?
_ O ‘Cruel Soberano’, sim, ele mesmo – a maga assentiu, supondo que ao menos podia ficar grata que o colega tivesse baixado o volume da voz – Foi um dos conselheiros depostos que nos contratou. Por causa do Globo da Ordem, ninguém nativo do reino pode agir contra o rei; então, tiveram que procurar por alguém além das fronteiras deles.
_ Mas, Gel, isso... Isso é loucura! – o outro protestou, ainda confuso – Roubar mausoléu de família real, procurar por artefatos... Sei lá, até missão de assassinato, mesmo, a gente pode até encarar, mas... Atacar um rei na casa dele!! Só nós dois? Isso vai exigir tempo, planejamento e, mais importante, um monte de gente! Não tem como só nós dois fazermos...
_ Só estamos indo fazer um reconhecimento por enquanto, Clóvis – a moça suspirou, reunindo forças para ter paciência – Nossa especialidade não é combate, é infiltração; eu sei que não podemos fazer tudo sozinhos, não tenho a menor intenção de bater de frente com os guardas do rei. Quero entender essa situação um pouco melhor.
_ Entender...? Mas, se o que a gente tem que fazer é só ‘matar’ o rei...
Ela tornou a acenar com impaciência, e Clóvis acabou por se calar. Não conseguia organizar os pensamentos com o outro tagarelando e, ao menos, a convivência o ensinara a fazer silêncio quando a colega precisava colocar as idéias em ordem – já os salvara em mais de uma situação, e bastara para Clóvis. E, por menos que tivesse intenção de contar ao companheiro de buscas, a verdade era que Angélica estava cheia de dúvidas.
Edo era famoso como ‘o mais cruel dos soberanos’, e desde sua adolescência, a maga aprendera que gente com tais títulos oprimia os próprios vassalos; logo, não havia surpresa que os conselheiros quisessem sua morte. Mas o povo parecia bem alimentado, os campos verdes e fartos e, até onde ela pudera perceber, Valência desfrutava do tipo de prosperidade tranquila que se esperaria de pequenos reinos agrícolas, e não do terceiro mais próspero reino do continente. Verdade, as pessoas pareciam nervosas nas ruas por onde ela e Clóvis haviam passado, mas sequer havia guardas nas ruas, até onde...
_ Hã, Angélica? – Clóvis perguntou, interrompendo sua linha de raciocínio – A gente não ia até o Solar? O... O centro da capital é pra lá...
_ Edo devia saber que seria um alvo fácil num palácio, no centro da capital, Clóvis – ela interrompeu – É lá que o Globo da Ordem de Valência foi colocado, sim, mas Edo foi mais esperto; o Solar Real da Casa de Jos fica nesta direção. Supostamente, é a única casa na vizinhança, então disfarça; lembre-se, não vamos atacar ou invadir, só queremos dar uma olhada no tipo de segurança que eles têm.
Clovis finalmente pareceu se acalmar um pouco, assegurado de que não entrariam ou sequer lutariam por enquanto, e Angélica teve tempo de pensar um pouco mais na situação. Os Globos de Ordem era uma invenção antiga, mas sua redescoberta e uso ativo em reinos daquele continente eram recentes; criações de magos poderosos do passado, seu poder reagia a quem fosse capaz de ativá-los, algo que dependia muito mais de pensamento sensato do que poder mágico ou sangue nobre; fora por isso que Edo, então um mero funcionário público, pudera acessá-lo e mudar suas diretrizes, tomando do governante anterior o cargo de rei. E fora astuto, voltando o poder do Globo para ao mesmo tempo preservar o sistema de governo enquanto ele vivesse e impedir que pessoas no território de Valência pudessem cometer assassinatos, garantindo que não poderiam assassiná-lo.
_ Mas ele cometeu um erro, pelo que pudemos apurar – Sálvio, o conselheiro que a contatara, sorrira entre dentes ao mencionar isso – Incluir as pessoas no território foi entendido pelo Globo, aparentemente, como ‘no território naquele momento’. Eu e meus associados temos quase cem por cento de certeza que vocês, estrangeiros, poderão alcança-lo e, agindo depressa, acabar com o nosso flagelo.
Ainda houvera comentários, como ‘seus nomes entrariam para a história de nosso reino’, elogios à bravura deles e, naturalmente, repetidas menções à recompensa que os aguardava quando a missão estivesse cumprida. Angélica era tão ambiciosa e concentrada no lucro quanto qualquer outra profissional de sua área, mas não era tola; sabia que por trás das palavras bonitas, o conselheiro deposto e seus colegas só queriam voltar a qualquer poder que tivessem antes que Edo se tornasse o soberano.
_ ‘Soberano’... – ela murmurou, seus pensamentos voltando ao ponto inicial – ‘O Mais Cruel Soberano’...
Seus instintos de maga, sempre confiáveis, soavam como uma nota desafinada toda vez que ela pensava no título pelo qual Edo era chamado, mesmo nas tavernas. Não havia qualquer demonstração óbvia, ou mesmo velada, de crueldade até onde seus olhos pudessem alcançar. Nada do cheiro desagradável de sangue, da aura inconfundível de violência, nem mesmo os sorrisos congelados de pessoas que tentassem aparentar uma vida tranquila enquanto sofriam pressão psicológica; nada. Pelo contrário, as pessoas resmungavam abertamente, embora não pudesse ver mendigos nas ruas, ou pedintes nos mercados. Quem vivia em Valência, aparentemente, estava livre da privação financeira. Será que Edo trancafiava os pobres? E, afinal...?
_ Angélica...?
_ Sim, eu estou vendo, Clóvis.
Sálvio procurara ser claro, até onde ela pudera avaliar, nos detalhes quanto a onde encontrar Edo; como esperado, já que ele queria a missão cumprida. Mas alguma coisa estava errada.
Não havia outras casas por perto, e aquele sobrado de dois andares estava no local exato onde o Solar do Cruel Soberano devia estar. Um feitiço simples, que sequer dependia de palavras, bastou para que ela tivesse certeza, não havia qualquer magia de ocultação ali. Se fosse para acreditarem nas indicações que haviam recebido, aquele casebre de aparência antiga era o Solar da Casa de Jos... E ela raramente vira algo que lembrasse tão pouco a casa de um soberano.
_ Não tem como ser aí, Gel – Clóvis obviamente concordava com ela – Sei lá, não tem torres, nem muros... Não tem nenhum guarda que dê pra ver, também. A sua magia...?
_ Já usei; não é ilusão.
_ Mas não faz sentido aquele tal conselheiro mentir pra gente – Clovis ficava curiosamente eficiente quando era necessário – Por tudo o que parece, é ‘essa’ a casa do Rei Edo. Por menos que isso faça sentido...
_ ... Eu admito, não estava esperando por isso – mesmo Angélica parecia confusa, sem saber como agir – A resposta lógica é que, de algum modo, Sálvio tenha se confundido. É claro, o rei ‘poderia’ morar aí, mas... Clóvis? Aonde você vai?
O parceiro estava determinadamente caminhando até o portão de acesso da casa, e deteve-se por um instante para responder.
_ Vou perguntar se o rei mora aqui, oras.
_ O q...! Clóvis – ela tornou a suspirar, parecendo concentrar-se muito para manter a calma – Pensa um pouco no que você tá fazendo, só por um minuto. Você pretende perguntar ao nosso alvo se ele mora...
_ Você mesma falou, não tem como ser a casa do rei, certo? – ele deu de ombros – Além do mais, ir perguntar na cidade mais próxima vai custar metade do dia. Se o endereço estiver errado e o rei morar aqui perto, mais fácil que um vizinho saiba do que qualquer outro. E você mesma disse, é só reconhecimento, por enquanto.
Angélica não teve muito o que dizer ou fazer, a não ser seguir o outro até a porta do sobrado, sem saber se o espanto maior era Clóvis fazer sentido ou ela não conseguir pensar em nada para dissuadí-lo. Mas aquilo também era uma espécie de marca registrada da parceria dos dois; nas raras ocasiões em que a mente aguda da moça não achava a solução, era a praticidade simples de Clóvis que os conduzia. O fato de ainda estarem vivos e nunca terem se ferido com gravidade só comprovava a eficiência do método. E o outro já estava batendo na porta.
Não levou muito tempo até que um morador atendesse; parecia um professor, ou escrivão de alguma espécie, na iminência de alcançar a meia idade e com um sorriso cordial.
_ Boa tarde. Algum problema?
_ Pedimos perdão por incomodá-lo – Angélica curvou a cabeça – Nós apenas... Bem, ao que parece, estamos perdidos.
_ Sabe, nos disseram que o Rei Edo de Valência morava aqui – Clóvis falou sem rodeios, fazendo Angélica corar com vergonha alheia – O senhor por acaso não sabe onde fica o Solar Jos, ou sabe?
_ Ora, claro que sim – o dono da casa sorriu mais abertamente – Fica bem onde vocês estão agora mesmo. Estavam me procurando, então? Bem vindos! Eu sou Edo Jos, da Casa de Jos, e é um prazer conhece-los. Entrem, por favor!

domingo, 27 de agosto de 2017

Capítulo Dois

Capítulo II – É o quê, ô??


Numa ocasião rara, tanto Angélica quanto Clóvis tinham a mesma expressão confusa e admirada no rosto, enquanto seguiam Edo Jos até a sala de estar, que poderia muito bem ser a sala de leitura de uma biblioteca qualquer; estantes com livros até onde a vista podia alcançar, de parede a parede, escadas aqui e ali para as prateleiras mais altas e sofás confortáveis num espaço amplo, com vários livros abertos aqui e ali. A típica sala de estar de um bibliotecário, ou escrivão. Talvez até um professor aposentado. Mas, se podiam acreditar no simpático anfitrião... estavam na presença do rei de Valência.
_ Aqui – ele voltou dos fundos da casa com uma travessa, um jarro transparente de bebida e quatro copos – Se vieram andando desde a cidade mais próxima, aposto que estão com sede. Por favor, sirvam-se.
Angélica procurou restabelecer a ordem de seus próprios pensamentos com aquilo. Agradecendo, ela serviu a si mesma e ao colega e perguntou:
_ Desculpe, senhor, mas... nos trouxe quatro copos?
_ Ah, sim, é que está quase na hora da minha esposa chegar – o anfitrião olhou para a porta, esperançoso – Imagino que ela também vai querer limonada.
_ Poxa, obrigado! – Clóvis se adiantou, apanhando o próprio copo e se servindo de um gole generoso, antes que Angélica pudesse sinalizar que não – Nem tinha percebido como estava com sede, até o senhor servir. E isso tá ótimo!
_ Heh, agradeço – o anfitrião sorriu – Eu adoro limonada; ainda não descobri nada melhor pra curar uma caminhada longa no sol.
Enquanto os dois homens gargalhavam, Angélica se serviu, procurando pensar depressa. Se houvesse alguma coisa na bebida, seu parceiro tolo havia consumido; esperava que fosse algo para o qual tivesse antídoto. E embora tivesse agradecido, ela apenas fingiu levar o copo à boca, mantendo os lábios fechados enquanto o anfitrião se servia e, após um primeiro gole generoso, perguntasse:
_ Agora, pelo que entendo, estavam à minha procura. Como posso ser útil?
_ Sabe, o senhor não parece nem um pouco com o que dizem – Clóvis tornou a dizer, antes que Angélica pudesse formular qualquer pergunta – Aquela história sobre...
E ele se calou, enquanto a parceira pisava na ponta de seu pé, com discrição e força. Era naqueles momentos que Angélica se arrependia de suas escolhas.
_ P... Por favor, perdoe os modos do meu colega – a jovem maga balbuciou – É só que... Bem, estamos muito surpresos.
_ Não precisa se desculpar, mocinha – o anfitrião sorriu, meneando a cabeça – Não é a primeira, e duvido que vá ser a última vez que escuto isso. ‘Cruel Soberano’, não era isso? Acho que, ao menos, posso ficar satisfeito de não parecer com isso. E, falar a verdade, eu acho muito engraçado ver as caras de vocês quando chegam e topam comigo.
_ Er... ‘Vocês’? – os instintos de Angélica soaram o alerta – Eu... Não sei se entendi muito bem.
_ Pode ser franca, menina – por um momento, o reflexo da luz nos óculos de aro redondo ocultou os olhos de Edo Jos por trás das lentes – Imagino que tenham vindo me matar, não foi? Acontece o tempo todo.
Angélica e Clóvis ficaram atentos, alertas, ambos esperando a qualquer momento por um ataque daquele que, até ali, parecera um senhor inofensivo à beira da meia idade. E, após alguns segundos, a maga se deu conta de que algo continuava errado. Edo apenas continuou a beber sua limonada, como se tivesse todo o tempo do mundo.
_ O que? – ele perguntou, baixando o copo e parecendo surpreso com a expressão dela – Achavam que eu ia fazer alguma coisa contra vocês? Não, mocinha, eu sou o rei, mas também sou parte do reino. Sou tão incapaz de violência ou assassinato quanto qualquer um neste território, ainda que seja sutil. Pode beber sem medo, eu não envenenei a bebida. Não teria bebido, sabe?
_ ... Poderia ter ingerido um antídoto, de antemão – ela murmurou, agora completamente atenta, enquanto Clóvis parecia se dar conta finalmente do risco que correra, bebendo sem pensar duas vezes – Ou preparado um copo neutro para si mesmo...
_ Você é muito esperta – ele tornou a sorrir, aquela luz estranha nas lentes ocultando seus olhos de novo – Sim, eu podia muito bem ter feito isso, não é? Assim, pareceria que estava tudo certo e seguro, enquanto induziria vocês a se envenenarem... ou coisa pior. Algo que fizesse por valer a fama do Cruel Soberano...
_ Quer parar de fazer terrorismo, Edo? – uma voz despreocupada veio da porta de entrada – Não ajuda nada a relaxar, seu besta!
Angélica e Clóvis se voltaram, deparando com uma bonita senhora que acabara de chegar. E o anfitrião, tendo visto quem chegara, saudou:
_ Oláááááááá, enfermeira!
_ Francamente – ela deu um muxoxo – Você não vai cansar nunca dessa piada?
_ Não consigo – Edo sorriu abertamente – Você fica muito fofa quando faz essa cara.
A bronca bem humorada da esposa, a reação divertida, tudo arruinou a impressão de ameaça que Angélica tivera, e ela tornou a ficar completamente perdida. Estava confirmado em fatos, aquele ‘era’ o Rei Edo Jos, de Valência. Logo, ele ‘deveria’ ser o Cruel Soberano... Mas simplesmente não podia ser.
_ Espera aí, dona – Clóvis ficou de pé, incapaz de tentar coordenar os pensamentos em silêncio como a colega – É isso mesmo? ‘Esse’ tiozinho... Quero dizer, o seu marido, ele é ‘mesmo’ o Rei Edo? Mas não pode!
_ ... É por causa da coroa? – o anfitrião perguntou, apontando para a própria cabeça – Não gosto de ficar usando. Mas se quiser, eu vou buscar...
_ Ele deve estar falando daquela história, de novo – a esposa suspirou – Eu já disse que você devia fazer alguma coisa quanto a isso, Edo!
_ Ah, eu sei, eu sei – ele acenou que sim, parecendo encabulado – É só que, bem, você sabe... Eu acabo me concentrando em uma coisa, em outra... e isso vai ficando.
_ Sei – a esposa continuou olhando para o marido com ar vazio – Se não te conhecesse, Edo... Você gosta dessa reputação, isso sim.
_ Pode ser – ele sorriu – Você me conhece mesmo. Escute, acho que seria melhor se...
_ Tá, tudo bem – ela meneou a cabeça, afastando-se rumo às escadas do sobrado – Explique, também acho que é melhor. Vou tomar um banho pra relaxar; tivemos um dia puxado na clínica.
E ela subiu, enquanto Edo voltava a se sentar, seguindo a esposa com os olhos até que ela sumisse de seu campo de visão.
_ Acho que também ouviram falar da minha rainha, Marisa? – ele olhou de um para outro, aparentemente frustrado com a falta de reação – Não? Hmph, isso sim é motivo pra acabar com a história; quem já ouviu falar de um ‘Cruel Soberano’ sem uma ‘senhora’...?
_ ... Parece achar que isso tudo é uma grande piada – Angélica comentou, parecendo na iminência de perder completamente a paciência. E Edo obviamente se deu conta disso, porque meneou a cabeça.
_ Não é uma escolha minha, mocinha. Achei engraçado quando fiquei sabendo, é claro, mas nunca quis essa reputação. Mas, presumo que vá fazer mais sentido se eu explicar desde o começo...
“Valência sempre foi próspera – Edo começou – E, claro, isso trazia seu próprio número de parasitas. Conselheiros, reis, senadores... Chame do que quiser, todos queriam sua parte do bolo. E por mais que o povo reclame, no fundo, são tão responsáveis quanto os parasitas. Afinal de contas, ninguém está realmente disposto a assumir qualquer responsabilidade; só querem alguém a quem culpar pela própria preguiça em mexer os traseiros e resolverem o que são capazes.”
“E isso sempre me incomodou – ele baixou os olhos, parecendo triste por um momento – Várias vezes tentei resolver o que estava em meu alcance, mas as pessoas simplesmente não colaboravam. Várias vezes, na minha função de escrivão, fui enviado para tomar notas sobre os problemas, que deveriam ser encaminhados para órgãos públicos responsáveis, de acordo com o problema. Mas eu tanto via burocracia e um jogo de empurra dos funcionários responsáveis quanto pessoas que, sem saber ou se importar se eu podia ouvir, buscavam conseguir um benefício ou serviço do qual não precisavam, ou que poderiam conseguir por si mesmos. Por muitas noites perdi meu sono, pensando que não havia solução para o problema; como você mantém de pé um edifício onde nenhuma das vigas suporta o peso que deveria?”
_ ... E o senhor... encontrou uma resposta? – Angélica perguntou, surpresa ao perceber que estava de respiração presa.
_ Na verdade, sim – ele bebeu um pouco de limonada – Entende, eu nunca tentei ‘ser’ o rei; só queria que o Globo de Ordem reconhecesse meu comando. Resumindo uma história longa, o que programei no Globo foi ‘que cada pessoa de Valência seja responsável pelos próprios atos, e colha as consequências e recompensas daquilo que fizer. E aqueles que violarem os direitos de outros serão julgados pelo próprio povo, e punidos de acordo com a infração cometida.’
Clóvis continuou parecendo confuso, mas Angélica começou a entender tudo; o reino, como ela vira, a irritação sem opressão das pessoas e até mesmo o título de Edo, enquanto o rei continuou a explicar.
_ Garanti que cada pessoa do reino soubesse do que havia acontecido, assim que completei a nova programação; o programa do Globo de Ordem transmitiria a consciência sobre a nova lei assim que fosse aplicada. Em escala menor e maior, em pouco tempo, cada pessoa descobriu que ‘teriam que vigiar a si mesmos’, assumindo responsabilidade pelo que fizessem. E, bem, eles não gostaram nada disso. Quanto mais o tempo passava, mais eles ficavam angustiados, tendo que renunciar a velhos vícios, abrir mão de corrupção e até mesmo se portarem melhor uns com os outros, porque aparentemente nada deixa o povo mais animado do que aplicar a nova lei; todos adoram poder vigiar uns aos outros, se acusarem e, principalmente, se punirem. Confesso, nem eu imaginei que daria tão certo; no fim das contas, não apenas criei um sistema de governo eficiente, também coloquei o mais perigoso, mau humorado e indestrutível monstro de todos de guarda! Digo, você pode decapitar uma medusa, esmagar as cabeças de uma hidra e até encontrar uma forma de matar um dragão... Mas destruir o povo, quando você é parte dele? Cada pessoa em Valência fica imediatamente a par de qualquer delito que um cidadão cometa em nosso território, e posso garantir, não há ninguém mais ansioso em aplicar punição do que o próprio povo. Eu sequer preciso me meter.
_ ... E por isso, é chamado de ‘Cruel’ – Angélica murmurou, encaixando a última peça do quebra-cabeça – Porque deixa sobre as costas deles a responsabilidade sobre si mesmos, e cada um precisa vigiar a própria conduta todos os dias. De certa forma, é como fazer com que caminhem sobre pontas de lanças, sem qualquer liberdade para extravasar... Uma grande crueldade, sim. É por isso, presumo, que não haja mendigos nas ruas, também?
_ Cada pessoa é responsável pelo que consegue, ou ‘não’ consegue – Edo assentiu – Vários nobres inúteis se converteram em sem-teto em menos de uma semana; como o que produziam era ‘nada’, era isso que colhiam. Se ouvi bem, parece que essas pessoas deixaram o país em levas, e até o final da primeira semana, quase não havia mais deles.
Clóvis parecia estar chegando a algum tipo de lenta realização sobre o que estava mesmo acontecendo, e Angélica ponderou sobre o que fazer a seguir. Um sistema simples e brilhante de governo, na verdade; nenhum corrupto ou aproveitador passaria despercebido, e o povo, aquela criatura manhosa e cheia de cabeças, estaria apenas ansiosa demais para devorar e destroçar qualquer um que tirasse vantagem deles. Ao mesmo tempo, forçar o povo a agir daquela maneira sem que qualquer delito seu passasse despercebido era mesmo um tipo de crueldade. Era natural do ser humano, afinal de contas, não ser correto o tempo todo...
_ E, acho que deveria mencionar – Edo acrescentou, os olhos novamente ocultos pelo reflexo da luz nas lentes de seus óculos – que embora eu ainda ‘possa’ ser morto por pessoas de fora, vocês deveriam pensar bem. Minha morte ainda estaria sujeita à regra programada no Globo; cada cidadão de Valência vai descobrir, e quem quer que o faça vai ser julgado pelo povo da forma que julgarem mais adequada ao delito. O que acham que fariam com uma dupla de assassinos? Ainda que sejam os ‘heróis’ que destruam o Cruel Soberano, serão punidos de acordo; acho que isso significa morte.
_ M-morte...? – Clóvis balbuciou, enquanto o olhar de Angélica escurecia – Nós...?
_ ... Presumindo, é claro, que alguém quisesse nos punir – Angélica murmurou, encarando o rei – Se consideram tamanho sofrimento, e soubessem que o matamos...
_ É verdade, mocinha – Edo meramente assentiu, não parecendo preocupado – Deixado por conta do povo, não dá pra saber como, realmente, isso terminaria. Mas deveriam levar dois últimos fatos em conta, antes de começar. Primeiro, apesar do que muitos parecem acreditar, eu nunca disse que minha morte desativaria a regra que programei no Globo de Ordem; não sei de onde tiraram essa idéia.
Angélica comprimiu os dedos, as mãos em punhos apertados, ponderando o que ouvira. Fazia sentido, e era bem provável; Edo era astuto o bastante para ter calculado sua eventual morte. Mas não importando qual o caso...
_ Segundo, e mais importante para vocês – ele sorriu novamente por trás das lentes dos óculos, como se soubesse o que ela estava pensando – Se tivessem contratado assassinos, e pudessem conseguir o serviço feito sem pagar... Pagariam por isso?


sábado, 24 de junho de 2017

Capítulo Sessenta e Cinco Ponto Um

(...)

_ Bem, isso também está bem – Fei deu de ombros. Nós não temos que ser perfeitos Na verdade, ser imperfeito faz a humanidade viver ajudando uns aos outros... Isso é o que é ser humano. Isso é o entendimento mútuo! Isso são ‘unidade’ e ‘amor’...! Eu estou grato... Não, orgulhoso... de ser humano!
“Elly colocou o futuro, o ‘amanhã’, em nossas mãos, baseado em nossa escolha – Fei voltou-se para a esfera onde Elly flutuava – E está se esforçando para manter Deus longe do nosso planeta. Ela também está tentando curar o seu coração... Você, que quer viajar sozinho para ficar com deus... Não consegue entender os sentimentos de Elly?! Você tem que se tornar um com deus antes de ser capaz de compreender tudo isso? Eu entendo – e tocou o próprio peito – Eu conheço os sentimentos dela... como se fossem meus próprios... Sim... Ela e eu somos um! Nós não precisamos da ajuda de deus!”

Bem, então prove isso para mim – Krelian retrucou – Me mostre esse poder dos humanos! Me mostre esse ‘amor’, que você diz que pode torná-lo independente de deus...

A ondulação na água entre a figura de Fei e a face de Krelian começou a aumentar cada vez mais, até que as águas se abriram e uma forma imensa ergueu-se delas, diante de Fei. Era uma figura feminina, de longos cabelos púrpura, e a face poderia ser de Miang. Seu corpo era como o de uma serpente da cintura para baixo, e tinha imensas asas brancas em suas costas, semelhante ao que o Omnigear Opiomorph teria sido em uma forma orgânica viva.
E Fei separou as mãos do corpo, como se fosse alçar vôo, e ergueu-se sobre as águas lentamente até ser recoberto por uma luz intensa. Se aquele lugar era um domínio da mente, e sua forma ali era como ele se imaginava, só precisava imaginar um pouco mais. Imaginar que estava a bordo de seu Gear. E Xenogears materializou-se ali, onde antes Fei estivera.

Urobulus...

Ao ser instigada por Krelian, a criatura atacou, deslizando adiante e impulsionando-se com sua cauda.
Xenogears ativou seus turbos, ou Fei meramente desejou assim, mas a primeira investida dela encontrou apenas o vazio, enquanto o Gear branco deslizava para direita e atacava com suas técnicas de máxima eficiência, atingindo Urobulus com ondas de energia ao mesmo tempo em que se afastava.
Talvez fosse a força do desejo de Fei em resgatar Elly, ou Xenogears de algum modo fosse mais poderoso ali, mas Urobulus não tinha o mesmo tempo de reação que ele; para Fei, era quase como estar novamente enfrentando um lento Dragão Rankar. As garras da mulher serpente procuraram por ele em seqüência, mas para Fei era como ver o movimento em velocidade reduzida, e após repelir dois ataques, ele saltou para trás e a atingiu novamente, o golpe de duas mãos lançando-a para trás.
Uma erupção de energia se deu então, e toda a água onde antes eles andavam pareceu erguer-se na forma de um amplo gêiser cintilante. Fei ficou desnorteado, instintivamente pondo-se em guarda. E surgindo do nada diante dele, as asas de Urobulus imobilizaram os braços de Xenogears enquanto seu corpo de serpente enroscou-se nele, e ela tombou para trás, fazendo-o cair contra a energia que vinha sob eles. Em algum recesso de sua mente, Fei lembrou-se que não estava no mundo físico e, portanto, não deveria estar sentindo aquela dor de verdade, mas seus braços e pernas discordavam.
As garras dela começaram a golpeá-lo, vez após a outra, e novamente Fei sentiu como se os golpes o atingissem diretamente. Mas, se aquilo era como um domínio da mente, ele não precisava esperar para carregar seus melhores ataques. Só precisava desejar que acontecessem. E ela estava próxima demais para evitar.
_ Xenogears em Modo Hyper... Kosho X!
As asas de Urobulus não puderam conter o súbito aumento de energia, enquanto os punhos de Xenogears começaram a golpear, revestidos de chi flamejante, velozes e próximos demais para bloquear, e ela soltou seus laços.
Xenogears recuou depressa, deslizando sobre a água para trás para se colocar em posição de defesa. Urobulus sacudiu-se, como se estivesse atordoada, e ele avançou outra vez.
_ Kishin!!
Veloz demais para ser detido, o Gear branco golpeou Urobulus de cima a baixo com os punhos carregados de energia, erguendo a mão direita e concentrando toda a energia do ataque num último ataque, caindo sobre a adversária e fazendo-a desaparecer na água sob eles com a força do golpe.
Xenogears ficou imóvel na posição do último ataque, enquanto Fei ofegava. Estava satisfeito que tivesse acabado, pois não sabia quanto tempo mais tinham antes dos efeitos da dobra começarem; era melhor que encontrasse Elly de uma vez...
E a cauda longa de Urobulus enroscou-se no pescoço de Xenogears, puxando-o para as profundezas onde fora lançada, e o surpreso Fei só compreendeu o que estava acontecendo quando sentiu o aperto da cauda de serpente novamente, desta vez pressionando o corpo de Xenogears enquanto mais uma vez a imensidão de água à volta deles se tornava em energia, e as garras e asas dela atacavam depressa. Era como uma versão menor do Kosho X, mas desta vez, ele fora imobilizado sob a massa de energia que fora água. Não parecia possível se mover tão depressa ou se defender ali e, ele enfim percebeu, os ataques com garras desde o início tinham sido para enfraquecer a armadura de Xenogears. Os ataques dela agora causavam dano dobrado, quando ele menos podia se defender.
Mas também não havia para onde fugir, Fei lembrou-se, e por combativa que fosse, Urobulus já fora atingida por dois de seus golpes máximos em Modo Hyper. Não importando o quanto Deus tivesse resistido, o mesmo não se daria ali. E ele ainda tinha forças para outro ataque.
_ Modo Hyper... Goten X!
Num movimento brusco, Xenogears abriu os braços, livrando-se do aperto e então concentrando a energia no corpo inteiro. Urobulus já estava desgastada do combate, não conseguiu reagir antes que o Gear de Fei girasse sobre si mesmo e a atingisse com ambos os pés, carregados de energia que explodiu e abriu a imensidão à sua volta.
Fei olhou ao redor. Xenogears não estava mais ali. Com a derrota de Urobulus, também Krelian desaparecera e todo o lugar parecia repleto de luz intensa. Percebendo a mudança, Fei voltou-se para a esfera onde Elly estava e chamou por ela.
_ Elly...
A esfera desceu lentamente até onde ele estava, e a moça despertou. A luz intensa à sua volta reduziu-se, enquanto ela abriu seus olhos e os fixou nele.
_ Fei...
Por um instante, os dois não disseram palavra, meramente olhando um para o outro. Ainda flutuando diante dele, Elly murmurou:
_ Foi Krelian... Krelian me libertou...
_ Krelian...?
_ Sim. Eu vim a entender depois de me tornar uma com Krelian... O coração dele estava tão cheio de tristeza...! Foi por isso que ele desejou que ele e eu nos tornássemos um com deus... Porque isso seria voltar ao início de tudo... Ele me disse... ‘Você deveria ficar com ele’... Isso foi o que ele me disse. Entende? Ele já sabia!
“Sim, ele já sabia... Como eu me sentia, como você se sentia... Mas não havia nada que nós ou ele pudéssemos fazer... Ele não teve escolha a não ser seguir em frente... Mesmo que significasse que ele perderia todos os sentimentos, perderia tudo o que era humano! Pelo bem de toda a humanidade...”
“Não havia retorno... Mesmo olhar para trás trazia muitas lembranças... E ele teria... desejado somente voltar... mesmo que não pudesse. Então, por favor o perdoe... Krelian amava as pessoas mais do que qualquer um outro...”
_ Eu... – Fei baixou a cabeça – Eu, de certa forma... Acho que sabia disso o tempo todo... Eu simplesmente sabia que ele era mesmo esse tipo de pessoa...
_ Eu sinto tanto... Por favor, me perdoe! Eu estava errada... Eu pensei que sacrificar a mim mesma a fim de salvar aos outros era a coisa certa a fazer... mas meus atos apenas trouxeram tristeza a todas as pessoas que deixei para trás. E essa tristeza deu origem a ainda mais tristezas. Enquanto ‘eu’ ainda viver no interior de vocês, minha vida não é apenas minha.
_ Elly... Isso não está errado – Fei meneou a cabeça serenamente – Se sacrificar pelos outros é uma coisa nobre... Mesmo se fosse para beneficiar si mesma, não é problema. Sempre haverá uma pessoa curada... Um ou o outro... O amor apenas consegue seu brilho verdadeiro quando existe uma inter-relação entre aquele que dá e aquele que recebe. Ele fica incompleto quando um ou o outro está faltando... Os dois são um. Foi você, Elly, quem me ensinou isso. Eu acredito que isso é o que significa ser humano... Eu agora posso compreender a verdadeira importância disso.  Não sei se é a resposta certa ou não... Mas temos um bocado de tempo para pensar a respeito. O que o próprio Krelian estava procurando o tempo todo... Nós encontraremos a resposta para tudo isso... por nós mesmos”
_ Obrigada... Fei!
_ Elly...
Ela desceu lentamente até onde ele estava, e Fei a apoiou enquanto descia. Os dois sorriram um para o outro, e Fei olhou para o alto, para a saída.
_ Vamos voltar para o nosso planeta.
O caminho para fora se estendia diante deles, e acima, uma imensa escadaria em espiral conduzindo a um ponto de luz cintilante que estava muito distante.
_ Aquela luz – Elly voltou-se para Fei – É o ponto de contato com nosso mundo. Mas a dobra dimensional já começou. Vamos conseguir a tempo?
Fei sorriu para ela e estendeu-lhe a mão.
_ Consegue correr?
Elly olhou admirada para a mão estendida por um momento, mas então sorriu para Fei.
_ Se estivermos juntos, eu consigo.
E estendeu a mão para Fei.

Fei e Elly correram, procurando não dar atenção para os tremores sensíveis e o som cada vez mais alto da dobra começando lá embaixo, onde tinham estado, com Fei à frente conduzindo Elly pela mão.
Uma luz intensa brilhou lá embaixo, iluminando a escuridão onipresente e parecendo crescer cada vez mais pela escadaria espiral que já tinham escalado. Avançavam tão depressa quanto podiam, tentando nem pensar no que aconteceria ali em breve.
A luz crescia no formato exato do pingente de Nisan, e as voltas da escadaria começaram a se desintegrar, subindo numa reação em cadeia até onde eles estavam como o vento de uma tempestade, com um estrondo ensurdecedor.
E Elly pisou em falso e caiu, soltando-se da mão de Fei.
Era a única coisa que poderia fazê-lo voltar-se. Elly estava caída e Fei notou, horrorizado, que a desintegração do caminho já os alcançava, e que não havia como escaparem. A destruição já estava tão próxima, o estrondo tão alto, que ele sequer pôde ouvir quando Elly chamou por ele.
_ Fei...!
_ Elly!!
Fei voltou-se e correu, atirando-se na direção dela. Os dois se abraçaram e fecharam os olhos. Sabiam agora que não havia como escapar da destruição e podiam aceitar isso... mas não seriam separados novamente.
A onda de choque passou por eles, e Fei apertou Elly contra si. E a trilha fragmentou-se sob o casal, lançando os dois ao vazio.
Fragmentos da trilha caíam com eles, que pareciam condenados a desaparecer, quando uma esfera de força envolveu a ambos e eles flutuaram por um instante antes de desaparecerem.
Fei abriu os olhos. Estavam sobre o que parecia um bloco de terra plano, envolto por uma esfera semelhante a uma bolha de sabão, e não estavam sozinhos. Também em sua forma de ser humano agora, olhando para a vastidão do universo que se estendia fora da barreira, estava um homem de longos cabelos azuis.
_ Krelian... Você...
_ Não há tempo – Krelian interrompeu, voltando o olhar inexpressivo para os dois – Este lugar está prestes a ser destruído.
Voltou-se totalmente para eles. Uma luz intensa, mais brilhante que as estrelas mais próximas, cintilava logo adiante de onde Krelian estava, e Fei e Elly sabiam que aquele era o ponto de contato por onde a ‘Existência’ retornara à sua dimensão. E Krelian disse.
_ Agora não existe mais deus – Krelian disse – Este não é mais o meu planeta lar. Este é o seu planeta lar, onde agora estão de pé.
_ Krelian... – Fei murmurou, ainda abraçado a Elly – Você não vai voltar, vai...?
_ Não...
Krelian sorriu levemente, voltando os olhos para a luz do ponto de contato, enquanto suas memórias voltavam para o dia da morte de Sophia e tudo o que fizera desde então.
_ Desde aquele dia, eu deixei de ser humano. Eu cometi tantos pecados... que qualquer tentativa de viver como humano é impossível. E a única que poderia ter me perdoado... se foi.
_ Isso não é verdade! – Fei bradou, colocando-se de pé diante de Elly – Eu sei que eles vão compreender. Ainda há tempo de sobra para pagar pelos seus pecados. Sabe, todas as pessoas podem fazê-lo.
_ ... Sempre o pacificador, hein Lacan...? – Krelian sorriu, baixando os olhos – Talvez seja isso o que significa ser humano. Mas, seja como for, eu não posso ir. É uma coisa que já decidi. Eu vou caminhar com deus. É o único lugar que resta para mim.
E sorriu serenamente, olhando além de Fei, diretamente nos olhos de Elly. O pesar dela por sua decisão era claro, mas não havia nada que pudessem ou tivessem para dizer um ao outro. O lugar dela era ali, e mesmo ele admitia isso. Era uma pena. E deu as costas a eles.
_ Eu preciso ir agora.
_ Krelian...
_ ... Na verdade... – ele ainda disse, enquanto um par de asas luminosas surgia em suas costas – eu invejo vocês dois.

No universo físico, menos de um minuto se passara entre o momento do encontro de Xenogears com Deus na contínua ascensão dos dois, e enfim o efeito da dobra aconteceu, e uma erupção de energia escarlate expandiu-se para todos os lados, sendo dispersa pela ionosfera do planeta Ignas. E do centro da erupção, dois pontos luminosos divergiram, um de volta para o planeta e o outro para o espaço infinito.
Nas camadas mais altas da atmosfera, as nuvens abriram-se subitamente, expulsas como se por uma explosão, e à frente do grupo deixando a cratera onde o complexo de Deus agora jazia inerte, Citan chamou:
_ Feeeeeiiii!!
Os demais olhavam para o alto com grande expectativa, enquanto um dos tripulantes da Yggdrasil abria um computador portátil e começou a tomar leituras da atmosfera. Sem se voltar, Citan perguntou:
_ O que aconteceu?
_ Ondas da explosão perturbaram a ionosfera – respondeu o outro – tornando impossível conseguir uma imagem. Eles provavelmente foram apanhados pela explosão...
_ Mas nem a pau!!

Envolto em chamas e numa trilha de energia, um ponto luminoso mergulhou vertiginosamente das camadas mais altas da atmosfera.

Citan olhou para o lado, e viu Bartholomew passar por ele, enfático em sua agitação:
_ Ele vai voltar. Prometeu pra gente que ia voltar! E eu sei que vai!!

O ponto de luz deixou as camadas mais altas e começou a resfriar-se, deixando uma trilha aberta riscada no ar, enquanto revelava ser uma esfera de energia. E, em seu interior, uma enorme forma humanóide.

Silêncio pesado recebeu as palavras de Bart. Mesmo os olhos de Emeralda, porém, não conseguiam divisar mais no céu do que pequenas estrelas cadentes, restos da explosão, que todos os demais também contemplavam.

Cada vez mais baixo, a forma humanóide começou a desfazer a proteção de energia à sua volta, e tornou-se visível como um imponente Gear branco.

Chu-Chu ficou agitada de repente, atraindo a atenção de todos e saltando de um lado para o outro sem dizer coisa alguma que fizesse sentido, e então saltando adiante para a borda do penhasco onde estavam.
Um novo estrondo nos céus tornou a desviar a atenção de todos, e o rosto preocupado de Citan Uzuki abriu-se de repente num misto de espanto e alegria, ao reconhecer a forma metálica que emergiu dentre as nuvens, ainda envolta no que restava de sua barreira. E o rosto de Emeralda foi iluminado pela luz do novo dia e por seu sorriso ao ver o Gear branco desacelerando, abrindo duas imensas asas de anjo.
Todos os demais sorriram de alívio, e Bart acenou e correu atrás de Chu-Chu, indo até a borda do penhasco enquanto, sentados juntos na cabine do piloto, Elly e Fei olharam de um para o outro, sorrindo ao ver os amigos correndo em sua direção. E foi diante da calorosa recepção deles que Xenogears pousou, trazendo sua preciosa carga.


PEQUENO PAR DE PEDAÇOS (Small Two of Pieces)
Yasunori Mitsuda / Masato Kato     sung by Joanne Hogg

Corra pelo frio da noite
Enquanto a paixão queima em seu coração.
Pronto para lutar,
Uma faca mantida próxima ao coração,
Como um lobo orgulhoso, sozinho no escuro,
Com olhos que observam o mundo.
E meu nome vai brilhar sobre
A face da lua.

Espelho quebrado.
Um milhão de formas de luz.
O eco antigo desaparece...
Mas somente você e eu
Podemos encontrar as respostas, e então
Nós podemos correr até o fim do mundo.
Podemos correr até o fim do mundo.

Fogo frio se agarra ao meu coração
Na tristeza da noite.
Dilacerada por esta dor,
Eu pinto o seu nome em som.
E a garota da alvorada,
Com olhos em azul,
E asas de anjo.
Os sons da estação são a sua
Única coroa.

Espelho quebrado.
Um milhão de formas de luz.
O eco antigo desaparece...
Mas somente você e eu
Podemos encontrar as respostas, e então
Nós podemos correr até o fim do mundo.
Podemos correr até o fim do mundo.

Nós nos encontramos na névoa da manhã
E nos separamos nas profundezas da noite.
Espada quebrada, e escudo,
E lágrimas que nunca caem,
Mas correm através do coração.
Banhado pela mais escura das águas,
O mundo está em paz, e imóvel.

Espelho quebrado.
Um milhão de formas de luz,
O eco antigo desaparece.
Mas apenas você e eu
Podemos encontrar as respostas, e então
Nós podemos correr até o fim do mundo.
Podemos correr até o fim do mundo... (2X)


SENHORAS, SENHORES E GALERA QUE CURTIU ATÉ AQUI... ESPERO QUE TENHAM GOSTADO TANTO DA HISTÓRIA DE ‘XENOGEARS’ QUANTO EU. DE CORAÇÃO. VALEU PELA COMPANHIA, E ATÉ UM DIA!


Forte amplexo do Louco

(Um extra: vai o link pro encerramento do jogo em CG, com a música no original. Os últimos diálogos estão em japonês, mas pra quem quiser 'mesmo' saber o que estão falando, é só ler cada espaço falado a partir de 'no universo físico', escrito ali em cima ^_^ Divirtam-se!)

sábado, 17 de junho de 2017

Capítulo Sessenta e Cinco

Capítulo 65 – Podemos Correr Até o Fim do Mundo


Com o final da batalha, os vitoriosos se viram transportados para fora da estrutura, onde tudo estava imóvel e silencioso. Os globos de suporte tinham desaparecido, os arredores já não cintilavam e o pilar central e seu domo superior estavam inertes. Talvez até demais.
_ O que... aconteceu? – perguntou Fei.
_ Meu Gear não se mexe mais – queixou-se Rico, e Citan explicou:
_ O Modificador Zohar deixou de funcionar. Provavelmente, essa é a razão pela qual nossos Gears não podem mais se mover. Há apenas uma resposta mínima de energia vindo do núcleo agora.
_ E quanto à Elly? – perguntou Fei, angustiado – O que está acontecendo com ela dentro daquela coisa? Os laços do Sistema Deus sobre ela devem ter se esgotado a essa altura. Então, por que não estamos tendo algum tipo de resposta? Vocês... não acham que nós a ferimos no meio da batalha, também...!?
_ Fei, acalme-se! – pediu Citan – Os sensores estão recebendo uma leitura de forma de vida no interior de Deus. Provavelmente é Elly. Então não se preocupe... Eu tenho certeza de que ela está bem.
Xenogears voltou-se para a abóbada inerte sobre o pilar. Seus sensores também registravam o sinal de vida no interior da estrutura, mas seu mestre estava inquieto. Não parecia haver vida alguma, quando se olhava para o que restara de Deus depois da batalha. Então...
_ Elly! – Fei chamou – Consegue me ouvir, Elly?! Deus não está mais ativo. Agora está tudo acabado... Então, saia daí! Me mostre o seu rosto, Elly! Elly!!
Ao invés de alguma reação de Elly, o que aconteceu foi uma súbita erupção de energia no interior da abóbada onde tinham enfrentado Deus, e toda a estrutura começou a cintilar e estremecer, cercada por uma versão púrpura da aura de Shevat, para surpresa de todos.
_ O q-que...? – Bart espantou-se – O que está acontecendo...?
_ Doc?! – chamou Fei – O que foi? O que está havendo?
_ Eu agora estou detectando uma tremenda quantidade de energia vindo do interior de Deus – Citan respondeu, analisando os gráficos em seu painel – É como se algo que estivesse trancado até agora tivesse subitamente se libertado e estivesse aumentando vertiginosamente...
_ Não pode ser – murmurou Fei – A ‘Onda Existência’?!
_ ‘Onda Existência’?
_ Tem que ser isso – Fei confirmou – A ‘Onda Existência’ foi agora liberta de sua ‘jaula de existência em carne’ dentro de Zohar... Provavelmente está tentando voltar à dimensão mais elevada de onde veio originalmente.
_ O que quer dizer – murmurou Citan – que isso é o pós-efeito da dobra dimensional?!
_ Como assim, ‘pós-efeito’? – perguntou Rico.
_ É como uma onda de choque que é induzida pelo deslocamento dimensional. Mas... tanta energia?! Se tal quantidade de energia for liberada aqui agora...
_ Se tanta energia for liberada... então o que vai acontecer, Doc?! Diga-nos!!
_ ... Este planeta será aniquilado! – Citan murmurou, pela primeira vez parecendo assustado – Esses números indicam que tem energia mais do que suficiente para devastar um planeta inteiro!
_ O que ichu quer dizer? – perguntou Chu-Chu, levando as mãos ao rosto.
_ Não pode estar falando sério?! – duvidou Bart.
_ Nós lutamos tanto – Billy cerrou os punhos – apenas para ver isso acontecer... ?!
_ Não há – Fei balbuciou de cabeça baixa – Não há nada que possamos fazer? Não temos como deter o pós-efeito?
_ Infelizmente – Citan respondeu, cabeça e voz baixas – Não há nada que possamos fazer. Quase todo o maquinário, incluindo nossos Gears, está fora do ar devido a Zohar ter sido desligado. Desta vez, não há nada que possamos fazer. Para ser claro com vocês – ele suspirou – isso é o fim para nós!
_ Mas isso é o cúmulo da idiotice! – Bart explodiu – Como diabos pode acabar tudo desse jeito?! Pelo quê todos nós lutamos até agora?!
Ninguém tinha como responder àquela pergunta. E então, o pilar central e tudo o mais ao redor deles começou a estremecer, enquanto violentas reações de energia irromperam do interior do domo onde haviam lutado contra deus, e Billy agarrou-se como podia em sua cabine.
_ As v-vibrações... Estão se intensificando...!
_ Espera um segundo...! – Rico olhou ao redor – Não, essas vibrações são diferentes! Tem que haver outra coisa causando isso...
_ Olhem!
Todos voltaram seus olhos para onde Maria apontava. A abóbada de energia começou a se erguer, lenta mas constantemente. Era inexplicável, mas também óbvio, que o núcleo de Deus estava deixando seu pilar de apoio e começando a flutuar.
_ Deus está...!
_ Está se erguendo?!
_ O que é dessa vez?
Aquilo não fazia o menor sentido, e enquanto toda a estrutura começava a ganhar velocidade e se afastar, Citan analisou:
_ Deus está liberando sua energia remanescente e começando a acelerar... Se continuar a ganhar velocidade nessa proporção, em breve vai abandonar a atmosfera...
_ Vocês não acham...?!
Fei olhava para o domo se afastando como se estivesse perdido em pensamentos, e Bart instigou:
_ Achar o que, Fei?
_  ... Que é a Elly?! Elly está levando Deus...!
_ Você tem certeza? – perguntou Rico, e Fei acenou enfaticamente, sem tirar os olhos da forma cintilante que se afastava.
_ Tenho certeza disso! Elly está tentando nos salvar levando Deus para fora do nosso planeta! Ela vai se sacrificar...
_ Não pode ser – Maria murmurou de mãos unidas – Ah, Elly...
_ Não podemos fazer coisa alguma...? – Billy olhou ao redor, inconformado – Não podemos simplesmente nos sentar aqui e assistir a isso acontecer, podemos?
Ninguém respondeu a princípio, nem mesmo Citan. Não parecia haver o que fazer. Mas então Fei falou, e sua voz era clara e confiante.
_ Esperem... Ainda existe uma coisa que eu posso fazer!
_ O que, Fei? – perguntou Chu-Chu, e Xenogears ergueu os punhos.
_ Meu Gear ainda funciona. Sem Zohar, a fonte de força dos seus Gears, o único Gear que permanece ativo agora é o meu. Assim como Deus, meu Gear e eu fizemos contato com Zohar. Somos os únicos que podemos nos mover agora. Eu estou indo salvar Elly!
_ Que absurdo! – Citan retrucou – Mesmo que você fosse capaz de alcançar Deus, não vai ter energia suficiente para regressar!
_ Mesmo assim, ainda preciso ir – Fei respondeu – Elly está tomando todo o fardo para si mesma. Se alguma coisa acontecer... Eu quero estar lá, com ela...
_ Ei, espera só um minuto! – esbravejou Bart – Você sabe que eu não vou ficar aqui parado e deixar vocês cometerem duplo suicídio... Se é isso o que está planejando!
Fez-se um silêncio pesado por um instante, enquanto os dois amigos se encaravam pelo comunicador. Mas Bart então fechou o único olho e murmurou:
_ ... É melhor voltarem vivos, ouviu?!
_ Bart...
_ Me promete!! Promete que vocês vão voltar... Daí, eu te deixo ir!
_ ... Obrigado, Bart – Fei sorriu – Eu prometo. Prometo a você que eu vou voltar... Com a Elly!
_ É melhor mesmo – Bart sorriu de volta, contrariado por não poder fazer mais.
_ Lógico, claro que sim!
_ Tá certo! Então vai andando!
_ Mas...
_ Vamos deixar ele ir, Citan – Bart acenou com a cabeça – A essa altura, Fei é o único que vai ser capaz de trazer Elly de volta. Não tem nada que possamos dizer ou fazer a respeito.
Citan suspirou, enquanto ele e os outros admitiam que Bart tinha razão. Não podiam desistir de Elly ainda, enquanto algo podia ser feito. Agora, tudo estava nas mãos de Fei.
 _ ... Você tem razão. Fei, mantenha sua promessa.
_ Não importa o que aconteça – pediu Billy.
_ Fei e Elly – murmurou Maria.
_ Vocês dois – pediu Emeralda.
_ Voltem pra casa – Rico acenou com a cabeça.
_ Nós vamos ficar esperandchu por vocês dois! – avisou Chu-Chu, e Fei sorriu.
_ Eu agradeço por isso... Bart... E todos vocês. Bom – ele suspirou – é melhor ir andando... mas não se preocupem! Eu vou voltar logo!
Fei voltou-se e olhou para o alto, para onde Deus desaparecia no céu, e sentiu Xenogears acompanhar seu movimento. Fora um longo caminho.
_ Acho que essa vai ser a última viagem que você e eu fazemos juntos – ele murmurou para o Gear – Estou contando com você... Parceiro!
Xenogears abriu suas asas de energia, dobrou os joelhos e saltou, impulsionando-se para então ganhar os ares.

A velocidade de deslocamento de Deus era impressionante, cortando o céu azul e ultrapassando as nuvens em pouco mais de um minuto, de modo que a única coisa mais impressionante era o próprio Xenogears, movendo-se depressa o bastante para alcançá-lo e interceptar sua rota de fuga pouco antes que deixasse os limites da atmosfera, enquanto seu mestre chamava por Elly e ambos, Xenogears e Deus, alcançavam a órbita do planeta e o azul era substituído pela escuridão do espaço.
E algo como um túnel colorido abriu-se no caminho deles, tragando caça e perseguidor como se crescesse à volta de ambos, até que tudo se desfizesse ao seu redor, e Fei ficou momentaneamente ofuscado pela luz branca.
Abriu seus olhos, e percebeu-se em um ambiente familiar. Estava de pé, sem roupas, sobre uma superfície eternamente ondulante do que parecia água cristalina, e não reconheceu de imediato onde estava.
_ Onde... estou?!
Olhou à sua volta. Flutuando diante dele, envolta numa esfera de luz e em posição fetal, aparentemente inconsciente e tão nua quanto ele próprio, estava uma jovem de cabelos vermelhos que ele reconheceu prontamente.
_ Essa é a Elly! Então, eu devo estar dentro de Deus?!
Não exatamente.
À direita e acima de Fei, ele notou, havia uma face translúcida que parecia feita de vapor. O rosto era familiar como o lugar onde estava, mas a princípio Fei não conseguiu reconhecer quem seria. A face estava falando, embora para Fei fosse mais como ouvir seus pensamentos...
Seu corpo verdadeiro é apenas um objeto físico... Ele meramente foi absorvido para dentro da carapaça exterior de Deus. Apenas sua consciência está aqui. Naturalmente, a garota que percebe diante de você também não é um ser verdadeiro. Sua consciência está meramente criando a imagem dela.
_ A ‘Onda Existência’...? Não... Esse não é você...! Quem é você...?
Pois agora Fei reconhecia aquele local, embora a face fosse algo diferente, e ele sacudiu a cabeça ao finalmente reconhecer aquelas feições.
_ Não pode ser...? É você, Krelian?! É isso, não é... ?! – Krelian! Foi você quem fez isso com a Elly!
O ‘Caminho de Sephirot’ foi conectado – Krelian respondeu – Ninguém pode impedir deus de voltar ao seu mundo agora. Então, para quê você veio até aqui, Lacan?
_ Eu vim aqui para levar a pessoa que eu amo embora comigo! Então, liberte a Elly! O Sistema Deus foi destruído. Está tudo acabado! Ao invés, eu te pergunto... O que está esperando conseguir agora?!
O tempo quando todas as coisas começaram – murmurou Krelian – O lugar onde todas as coisas eram uma... Eu vou retornar para lá!
_ Que lugar...?
Antes do início do universo, nas ondulações intermináveis da dimensão superior, todas as coisas eram uma. Foram as ondas se derramando de lá que criaram este universo quadridimensional em que existimos. A ‘Humanidade’ e as ‘Almas da Humanidade’ que nasceram de lá, são meramente sobras deixadas por aquelas ondas derramadas. Sendo assim...
_ Você vai voltar para lá? – Fei não podia acreditar – É isso o que você desejava?
Lacan... Por que tamanha relutância em se tornar um com o deus? Que ligações você poderia possivelmente ter com este velho mundo desprezível? Que significado pode ser encontrado em viver uma existência tão curta... Ferindo aos outros, ferindo a si mesmo, oprimindo uns aos outros... Apenas para inevitavelmente morrer e tornar ao pó? Ora, se tudo o que poderíamos desejar está aqui... Não é preciso se preocupar com a necessidade por amor... Pois este lugar está cheio do amor de deus.
_ Eu não perdi a esperança nos humanos como você perdeu, Krelian... – Fei sacudiu a cabeça – Algum dia, a humanidade vai se entender! Eu acredito sinceramente nisso!
Como pode ter tanta certeza? Os humanos nunca virão a entender uns aos outros.
E a face de Krelian voltou-se para a adormecida consciência de Elly por um instante, antes de tornar a encarar Fei.
Você disse que ela é a pessoa a quem você ama... Mas pode dizer que vocês sequer entendem realmente um ao outro? Tudo o que os humanos fazem é se colocarem a uma distância confortável um do outro e chamam a isso de ‘entendimento mútuo’, ‘unidade espiritual’ ou ‘verdadeiro amor’...
... Mas são tudo mentiras! Os seres humanos não conseguem se associar sem primeiro enganarem uns aos outros. É assim que foram criados.
_ Mas o ego de um ser não pode determinar o destino de todo o mundo! – Fei replicou – As pessoas têm o direito de escolher seu próprio destino! É por isso que os humanos têm o livre arbítrio!
E se esse ‘arbítrio’, em si, fosse pré-determinado? – murmurou Krelian – E então? Ah, a tolice...!
Humanos são apenas formas de vida primitivas que não têm tais coisas como o livre arbítrio... A humanidade meramente teve permissão de viver em um estado imperfeito... ‘Como é...’ ‘Como será...’
É por essa mesma razão... Porque os humanos têm esse desprezível ‘arbítrio’, ou seja qual for seu nome... que eles devem experimentar tristeza e perda. Para que alguém consiga algo, significa que outro deve perder... É impossível fazer a humanidade partilhar ‘coisas’ e ‘afeições’ limitadas...
Assim, eu cheguei à conclusão de que tudo deve ser revertido de volta para onde começou. Voltar para quando tudo era apenas um... Ondas, e nada mais... Isso não é o meu ‘ego’ de humano... É a vontade das ‘Ondas’... A vontade de ‘deus’...